Monica Aiub – Doutora em filosofia pela PUC-SP.
Espaço Monica Aiub – Filosofia, Arte e Cultura
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Por que não sou mais filósofa clínica?
Se você acompanha esta revista desde os primeiros números, provavelmente lembrará de minhas várias contribuições tratando da temática filosofia clínica. Não apenas trabalhei no consultório de filosofia clínica por cerca de 20 anos, como atuei na formação de filósofos clínicos, fui sócia-fundadora da extinta APAFIC – Associação Paulista de Filosofia Clínica e da ANFIC – Associação Nacional de Filósofos Clínicos, tendo presidido, durante vários mandatos, estas associações. Fui uma grande divulgadora do trabalho, tendo realizado incontáveis palestras, participado e organizado muitos eventos, escrito livros e artigos, organizado revistas e editado vários materiais. Fundei o Interseção – Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo, onde me dediquei a pesquisas filosóficas. Tudo isso para dizer ao leitor que participei intensamente deste movimento.
Quando iniciei os estudos na área, compreendi que a filosofia clínica era o exercício do filosofar. E isto está marcado no título do livro que publiquei em 2004 “Filosofia Clínica: O apaixonante exercício do filosofar” (WAK) e presente em todos os outros livros e artigos nos quais abordo o assunto. Desde o início – comecei os estudos na área em 1997 – havia controvérsias a este respeito. Em 1999, o I Encontro Nacional de Filósofos Clínicos teve como uma de suas temáticas a discussão acerca do que era a filosofia clínica: Filosofia? Ciência? Arte? A questão estava posta, mas como afirmou José Maurício de Carvalho em seu livro Diálogos em Filosofia Clínica (FiloCzar, 2013), “Esta distinção não parecia muito importante no momento inicial da Filosofia Clínica, mas os debates e críticas dos últimos anos mostraram que era assunto relevante” (p. 12).
Apesar de não ter sido dada a devida atenção à questão, as diferentes interpretações acerca do que é a filosofia clínica já estavam presentes. Carvalho é um autor que desde o início defende que a filosofia clínica não é filosofia. Ele dedica o primeiro capítulo do livro Diálogos em Filosofia Clínica – mas esta ideia está presente em vários de seus livros – para demonstrar sua tese, corroborada por Packter no prefácio do citado livro, ao afirmar tratar-se de uma leitura correta de seu trabalho. Carvalho define a filosofia clínica como “uma técnica de ajuda pessoal, uma forma de aconselhamento psicológico” não desenvolvida no campo da Medicina ou da Psicologia (p. 19). Em conversa pessoal, ao descrever a ele como trabalho, ouvi a seguinte observação: “O que você faz é filosofia, mas não é filosofia clínica”2. Refleti muito sobre a questão. Na ocasião estava escrevendo uma resenha do texto Diálogos em Filosofia Clínica, para o livro Uma Filosofia da Cultura: Escritos em homenagem a José Maurício de Carvalho (UFSJ, 2016) e tornei público, neste texto, pela primeira vez, meu agradecimento a Carvalho, por ter apontado meu equívoco de interpretação inicial.
Filosofia Clínica: um equívoco, diferentes práticas
Este equívoco, ou seja, compreender a filosofia clínica como exercício do filosofar, foi gerado pela ambiguidade e falta de clareza dos discursos e textos de Packter, e por sua não correção a minha interpretação de sua proposta. Ele foi leitor de meus livros antes de serem publicados e poderia ter corrigido o equívoco. Agradeço a ele o que deveria ter sido repreensível: a atitude de um mau professor, pois ela permitiu o desenvolvimento de um trabalho diferenciado na área, uma vez que se eu houvesse compreendido a real natureza da proposta dele, não teria me dedicado a estudá-la.
Hoje vejo que há diferentes práticas com o nome “Filosofia Clínica” – derivadas não apenas do meu, mas de outros também equívocos de interpretação – com diferentes exigências para a formação – algumas escolas exigem a graduação específica em Filosofia, outras pedem qualquer graduação, e há aquelas que se constituem como cursos técnicos, sem a necessidade de uma graduação ou mesmo do estudo da filosofia, o que seria justificado pelo fato de ser uma técnica, podendo ser aprendida e aplicada por qualquer pessoa.
Quando a assembleia da ANFIC, em janeiro de 2016, decidiu por voto da maioria por não mais exigir a graduação específica em Filosofia, com a justificativa de ampliar o mercado para os cursos, e não aprovou a inserção de disciplinas que apresentassem conceitos e métodos filosóficos nos cursos, com o argumento de que não precisávamos estudar filosofia, eu, que presidia a associação e a assembleia, percebi que não poderia representar mais aquela associação, nem ser representada por ela. Então renunciei à presidência e pedi meu desligamento como associada.
Considerando os rumos que o Instituto Packter já tomava na época, meu desligamento foi, também, deste instituto, principalmente pela defesa, do próprio Packter, de que a filosofia clínica é, muitas vezes, um processo de alienação3. Isto eu não consigo conceber. Uma “filosofia” que aliena, não é filosofia! Uma filosofia clínica que não exige o estudo e a formação em filosofia, não é filosofia!
Mantive, em minha escola, a exigência da graduação em Filosofia e adotei, como diferencial, um subtítulo: Filosofia Clínica como o exercício do filosofar. Mas isso não foi suficiente para traçar as distinções, para não ter meu trabalho confundido com práticas que se distanciam do filosofar, com uma espécie de “autoajuda filosófica”, descrita muito bem por João de Fernandes Teixeira em seu livro Por que estudar Filosofia? (Paulus, 2017, pp. 25-26), no capítulo intitulado A cilada da autoajuda, ou pior, com práticas de um esoterismo travestido de filosofia.
Os três últimos anos caracterizaram meu trabalho como uma tentativa de manter a filosofia clínica no campo filosófico, de mostrar o quanto a filosofia pode ser importante para pensarmos as questões cotidianas, o quanto os métodos filosóficos podem auxiliar nossa existência, o quanto a investigação filosófica pode ampliar nossa compreensão sobre o mundo em que vivemos e sobre nós mesmos, permitindo escolhas e posicionamentos mais refletidos, ampliando nossos graus de autonomia, ou seja, defendendo aquilo que considerei ser a filosofia clínica desde o início. 4
Por outro lado, o atual contexto de questionamento sobre o papel e “utilidade” dos estudos em Filosofia5, promovido pelo ministro da Educação Abraham Weintraub, suscita a necessidade de divulgação desta atividade filosófica e a constituição de um movimento em favor da reflexão filosófica como uma prática fundamental em nossos dias. Ainda neste campo, a importância de se distinguir entre o filosofar e a difusão de uma postura dogmática, intolerante, alienante, promovida por “falsos filósofos”, é imprescindível.
Mudanças radicais
Diante do contexto da filosofia e dos rumos das “filosofias clínicas” no Brasil, optei por uma atitude radical: Encerrei as atividades do Instituto Interseção. Além disso, em nome da clareza e, como diria Charles Sanders Peirce, da Ética da Terminologia6, declaro – aqui e em todos os lugares possíveis – que não sou mais filósofa clínica, ou melhor, diante do contexto aqui apresentado, nunca fui. Minha atividade é, e sempre foi, filosófica. Por isso, prossigo fazendo o que tenho feito durante estes mais de vinte anos: pensar – junto com as pessoas ou grupos que procuram o consultório de filosofia – sobre as questões da existência, analisando e abordando tais questões filosoficamente; formar pessoas interessadas em desenvolver esta mesma atividade – os novos cursos oferecidos para a formação de filósofos para atuação em consultório possuem como exigência inicial a graduação específica em Filosofia; oferecer cursos livres a pessoas interessadas em estudar filosofia, sobretudo possíveis leituras filosóficas para as questões cotidianas; oferecer cursos livres temáticos sobre questões significativas a sociedade e cultura contemporâneas; oferecer cursos livres temáticos para profissionais interessados em estudar filosofia estabelecendo relações específicas com suas áreas de atuação; coordenar grupos de estudos em filosofia; desenvolver pesquisas filosóficas. Além disso, em parceria com a Livraria & Editora FiloCzar, onde atuo como editora com César Mendes da Costa, promover a leitura, a pesquisa e a difusão do conhecimento.
Para tal, após encerrar as atividades do Instituto Interseção, criei o Espaço Monica Aiub – Filosofia, Arte e Cultura, com atividades no mesmo local onde funciona a Livraria & Editora FiloCzar, no Parque Santo Antônio, localizado na periferia da zona sul paulistana. A mudança de endereço é parte da nova proposta: compreendo, assim como César, que a filosofia deve estar presente em nossas periferias, na vida cotidiana dos trabalhadores, dos estudantes. Sua presença nas escolas públicas é fundamental, para que os estudantes possam exercer atividades mais do que necessárias para os contextos atuais: a dúvida, o questionamento, a crítica. Contudo, é insuficiente, pois a população estudantil não é a totalidade, nem a maioria da população brasileira. É preciso que os pesquisadores se aproximem da população e compartilhem suas descobertas e invenções. Nesta perspectiva, reúno a proposta e as atividades do Espaço Monica Aiub às da Escola Livre de Filosofia, Ciência e Arte, criada por César Mendes da Costa em 2011.
Continuo atuando, também, na mesma região onde já atuava anteriormente, no bairro Santa Cecília, em São Paulo e, apesar de minha aposta constante e fundamental nos encontros presenciais, inicio um trabalho via web, para atingir pessoas que não possam se deslocar até São Paulo.
Apesar de apresentar estas mudanças como uma “atitude radical”, prossigo com o desenvolvimento das pesquisas e trabalhos que já desenvolvia. A radicalidade de meu posicionamento consiste em marcar as distinções entre meu trabalho e outras propostas, aceitando a leitura de José Maurício de Carvalho, ao afirmar que “a filosofia clínica [de Packter] não é filosofia”; que o que faço “é filosofia, mas não filosofia clínica”. Assim, a distinção fundamental é colocar-me (como sempre me coloquei) no campo filosófico e não em outros.
A filosofia não se confunde com a psicologia, com a medicina, embora possa refletir sobre elas, contribuindo, com suas reflexões, para pensar as questões advindas de tais práticas. A abordagem que faço às questões que as pessoas trazem no consultório é uma abordagem filosófica (nunca médica, nem psicológica, pois não tenho formação nestas áreas). Esta abordagem não é apenas uma possibilidade; ela já se deu muitas vezes no decorrer da história da humanidade. Além disso, é prevista na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, que inclui, entre as atividades do filósofo, a “finalidade de formar e orientar pessoas e assessorar organizações”. É no campo de uma orientação filosófica que classifico meu trabalho.
Para quem já estudou filosofia, não é preciso destacar que uma orientação filosófica não diz respeito a construir guias para a ação, oferecer caminhos e respostas prontos. Uma orientação filosófica é, fundamentalmente, um questionamento sobre o mundo em que vivemos, sobre a origem e o fundamento de nossas ideias, concepções, ações, de nossos modos de ser, sentir, viver e pensar. Uma orientação filosófica exige métodos e critérios para nossas pesquisas e reflexões. Mais do que isso, exige num olhar para os contextos, para as relações, investigando as influências e implicações de nossos posicionamentos.
Abordar um problema filosoficamente é abordá-lo a partir de sua história, não apenas da história de do sujeito que o enfrenta, mas desta inserida numa história mais ampla, de uma sociedade, de uma cultura e, até, da própria humanidade. É pensar a questão a partir dos referenciais do sujeito que a propõe, mas, principalmente, considerar quais são estes referenciais e as implicações de olhar a partir deles. Mais do que isto, observar outras concepções e perspectivas que poderiam ser consideradas para abordar a questão, assim como as diferentes implicações de cada uma delas.
Com tais características, creio deixar claro ao leitor que este trabalho também se distancia e difere-se profundamente das práticas dos influenciadores midiáticos, dos autores de autoajuda, assim como das práticas do esoterismo.
Um convite, quase um manifesto
Há uma confusão que envolve o conceito de filosofia, já apontada por Karl Jaspers em seu livro “Introdução ao pensamento filosófico”, confusão esta fundamental para a “destruição” da filosofia: ou ela é elitizada, algo que não é para todos, apenas a poucos “iluminados”, “geniais” – isso a destrói porque a afasta de seu objetivo principal, que é partir do mundo e das questões por ele colocadas na existência e a ele retornar, propiciando sua transformação; ou ela é banalizada, sendo “tudo” filosofia: a “filosofia de vida”, a “filosofia do boteco”… sem o rigor necessário à reflexão filosófica, desqualificando a importância de uma reflexão crítica e fundamentada.
A ideia da existência de um abismo entre as pesquisas filosóficas – e também as pesquisas científicas, a produção artística – e a vida cotidiana da maioria das pessoas é um equívoco que precisa ser retificado. Muitos pensam que as pesquisas desenvolvidas nas Universidades e Centros de Pesquisa nada dizem acerca da vida cotidiana, em nada contribuem para o desenvolvimento da sociedade e da vida. Esta ideia é um erro. Talvez uma ou outra pesquisa tenha pouca relevância, mas grande parte delas tem relação direta com a vida cotidiana, embora a maior parcela da população não tenha acesso a seus resultados e não saiba disso. Assim, falta a divulgação, a disseminação e a distribuição do conhecimento. Mais do que isso, falta a apropriação, por parte da população, destes saberes que são construídos diariamente e que em muito contribuiriam para o cotidiano da maioria.
Por outro lado, muitos pensam que o estudo, a pesquisa, o conhecimento não lhe pertencem, não são um direito de todos. Que a Universidade não é um lugar para ser frequentado por todos – e estas afirmações foram reiteradas, nos últimos meses, por pessoas que ocuparam ou ocupam postos de destaque em nossa sociedade7.
Vejo, assim, a importância de uma aproximação, cada vez maior, entre os pesquisadores e a população, com a divulgação e a disseminação dos conhecimentos produzidos, para que sejam apropriados pelas pessoas e possam contribuir para a melhoria da vida cotidiana das populações. Esta talvez seja a maior radicalidade do que venho propondo durante estes anos: de um lado, mostrar às pessoas que elas podem conhecer, produzir conhecimento, que todos somos capazes de pensar, investigar, pesquisar, criar... e que isto pode tornar nossas vidas melhores. De outro, promover a aproximação dos pesquisadores àqueles a quem mais as pesquisas interessam, mais do que isso, formar pesquisadores.
Considerando as dimensões de nosso país, os recursos que possuímos no Brasil, como poderia ser a vida de nossa população se cada cidadão pudesse ser, também, um pesquisador, capaz de investigar sua realidade, produzindo e compartilhando conhecimentos com métodos e fundamentos? Utopia? Diante de nossa história e das atuais circunstâncias, sim. Mas poderíamos construir movimentos neste sentido e, neste caso, a filosofia teria um papel importante.
Este texto é um convite, quase um manifesto, dirigido primeiro aos filósofos, para que se permitam compartilhar suas dúvidas, seu espanto diante do mundo, suas reflexões com o maior número de pessoas possível. Para que compartilhem os conceitos e métodos filosóficos, o modo filosófico de abordar os problemas. Mas é, também, um convite a todos aqueles que acreditam nas possibilidades advindas de um conhecimento compartilhado e apropriado, a contribuírem com esta construção, provocando e sendo provocados ao exercício da dúvida, da investigação e da reflexão.
Referências:
AIUB, M. Como ler a filosofia clínica: Prática da autonomia de pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.
AIUB, M. Para entender Filosofia Clínica: O apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
CARVALHO, J. M. Diálogos em Filosofia Clínica. São Paulo: FiloCzar, 2013.
JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 2011.
PEIRCE, C.S. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. (CP). CD-ROM past masters. Charlotterville: Intelex Corporation, 1992.
TEIXEIRA, J. F. Por que estudar filosofia? São Paulo: Paulus, 2017.
TOMAZ, M. S.; SILVA, A. J.; ALMEIDA, P. R. A. (orgs.). Uma Filosofia da Cultura: Escritos em homenagem a José Maurício de Carvalho. São João del-Rei: UFSJ, 2016.
1Artigo publicado na Revista Filosofia, Ciência & Vida, Ano XIII, n. 153, Ago 2019. pp.6–67.
2Conversa no Instituto Interseção, por ocasião dos eventos de lançamento do livro Ortega y Gasset e o nosso tempo (FiloCzar, 2016), em 05 de agosto de 2016.
3A afirmação foi feita e repetida durante a palestra O uso das autogenias em consultório, feita por Packter no XVII Encontro Nacional de Filosofia Clínica, em Chapecó, em 06 de junho de 2015. Disponível em: <http://www.institutopackter.com.br/2015/XVII%20Encontro%20Nacional%20de%20Filosofia%20Cl%C3%ADnica/parte%20I.%20Autogenias%20em%20consut%C3%B3rio.%20L%C3%BAcio%20Packter.mp3> e em: <http://www.institutopackter.com.br/2015/XVII%20Encontro%20Nacional%20de%20Filosofia%20Cl%C3%Adnica/parte%20II.%20Autogenias%20em%20consut%C3%B3rio.%20L%C3%Bacio%20Packter.mp3>, acesso em: 08 de junho de 2019.
4Ver meu artigo Filosofia Clínica no Brasil: Perspectivas do Instituto Interseção, São Paulo. In HASER. Revista Internacional de Filosofía Aplicada, nº 9, 2018, pp. 39-65. Disponível em: <http://institucional.us.es/revistas/haser/9-2018/AIUB.pdf>. Acesso em: 08 de junho de 2019.
5Ver meu artigo O papel da filosofia em tempos de Fake News, no número 151 da Revista Filosofia, Ciência & Vida.
6Título do texto de Charles Sanders Peirce, em CP 2, 219-226.
7Entre outras, destaco a afirmação de Ricardo Vélez Rodrigues, em 30 de janeiro de 2019, ocupando o cargo de Ministro da Educação, dizendo que a “universidade não é para todos”, conforme matéria de Renata Mariz, Ministro da Educação afirma que universidade é somente para algumas pessoas, publicada em O Globo, em 30 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/ministro-da-educacao-afirma-que-universidade-para-somente-algumas-pessoas-23414713>. Acesso em: 09 de junho de 2019.